ESCOLA COM O PARTIDO DE GRAMSCI
João Donizeti Alves Teodoro
[1]
RESUMO
Esse trabalho busca, dentro da
filosofia de Antonio Gramsci, uma metodologia de educação adequada aos
explorados ou subjugados. A escola sob a orientação do Estado acaba por transmitir
a ideologia dominante, por isso Gramsci defende uma escola única pública e afinada
com os princípios da revolução socialista. A escola gramsciana busca dar
especial atenção para o projeto educacional que desenvolva uma formação
omnilateral. A presente pesquisa visa contribuir para o desvelamento ideológico
do capitalismo no que concerne a educação e formação humana, norteando o trabalho
de construção de outros rumos, através do projeto de emancipação do homem
proposto pela filosofia de Marx, proficuamente tratada por Gramsci. Este
esforço pretende superar o senso comum, o que exige domínio de teorias,
conceitos e categorias de análise, com métodos de reflexão crítica e rigorosa,
capaz de propicionar uma nova concepção de mundo. Uma nova cultura compatível
com a hegemonia que se quer e pode ser buscada no ensino público. A escola,
assim pensada daria respostas mais completas às questões da formação humana,
desvelando os enigmas colocados pelas estratégias político-ideológicas.
Palavras-chave:
Escola única, Hegemonia e Intelectual orgânico.
INTRODUCÃO
Considerando que a educação é sempre
uma atividade intencional, a ser medida pela referência a uma finalidade ou
projeto, ela configura práticas sociais movidas por interesses inerentes à
cultura, felicidade dos indivíduos e sobrevivência da espécie humana. Essa
afirmação mesma já é uma interpretação que só poderia manter-se no interior de
algum debate sobre a educação. A educação pode ser entendida como um grande
laboratório, um campo de desenvolvimento de interpretações e perspectivas sobre
o homem, sobre o que seria bom acontecer em seus diferentes ciclos de vida,
infância, adolescência e diferentes fases da vida adulta. O debate sobre a
educação envolve, pois, muito mais que teorias parciais sobre o homem,
interpretações pedagógicas, psicológicas, históricas ou filosóficas. Além de
ser permanente e continuada, ou, de combate entre interpretações rivais sobre o
homem, o debate da educação pode configurar um diálogo total do homem com ele
mesmo.
Gramsci, materialista histórico-dialético, foi um pensador ligado a
todos os problemas de seu tempo e deu grande importância à educação. As crises constantes do sistema capitalista
parecem atingir a escola de diversas maneiras. As estratégias que os dominantes
apresentam são: novas metodologias e reformismos teóricos. Uma delas é promover
a associação pacífica e acrítica dos programas pedagógicos. No ensino médio,
recebemos novas leis e decretos um após o outro, de modo que quando assimilamos
o conteúdo de um, este já está revogado por outro recente. No Senado Brasileiro
tramitam, atualmente cinco projetos de lei que têm como objetivo interferir
diretamente nos conteúdos abordados em salas de aulas, sob o pretexto de evitar
a “doutrinação política e ideológica”, também propõe coibir o ensino, nas
escolas, daquilo que chamam de “ideologia de gênero” e, entre outras formas de
“ameaças à família” que afirmam existir no ambiente escolar.[2]
Nessa perspectiva, esse trabalho busca compreender através das análises
gramscianas, uma nova posição para o professor frente aos problemas que surgem
de todas essas estratégias educacionais elaboradas por representantes das
classes dominantes brasileiras.
A ESCOLA COMO
PARTIDO DE GRAMSCI
Na filosofia de Gramsci
encontramos fundamentos para melhor compreender as atuais diretrizes
educacionais e curriculares brasileiras, para forjarmos um novo homem. O que
significa para Gramsci formar um cidadão, entendendo este como alguém que
possui “o direito de ter direitos”? Quando uma educação confere ao educando a
possibilidade de com sua experiência de vida aprender a se tornar sujeito de
sua aprendizagem?
Sabemos que estudar Gramsci é
embrenharmo-nos na difícil missão de descortinar os caminhos de luta pela
emancipação humana. Essa causa que hoje pode nos parecer quase perdida se
considerarmos os sobressaltos do capital e a qualquer custo. A questão que se
põe é a da formação humana, da educação pelo trabalho, pela configuração do
trabalho associado, o qual exige a apropriação dos meios de produção e do
conhecimento pela massa de homens trabalhadores.
Gramsci mostra que a produção capitalista
tenta construir um homem dócil para possibilitar sua maior exploração e
alienação. E defende ainda que o intelectual orgânico, que além de especialista
na sua profissão, que o vincula profundamente ao modo de produção de seu tempo,
elabora uma concepção ético-política que o habilita a exercer funções
culturais, educativas e organizativas para assegurar a hegemonia social e o
domínio estatal da classe que representa. Para Gramsci, “orgânicos” são os
intelectuais que fazem parte de um organismo vivo e em expansão, portanto, desempenha
a função de organizador, de organicidade política a classe à qual está
diretamente ligado.
O empresariado capitalista, entendendo-se
numa posição superior, cria para se proteger um aparato técnico científico
composto por cientistas de economia política. Se não todos os empresários, pelo
menos uma elite deles deve possuir a capacidade de organizar a sociedade em
geral, em todo o seu complexo organismo de serviços, até o organismo estatal,
tendo em vista a necessidade de criar as condições mais favoráveis à expansão da
própria classe; para tanto, deve possuir a capacidade, os “prepostos”
(empregados especializados), a quem confiar esta atividade organizativa das
relações gerais exteriores à empresa.
Em todas as épocas e em suas diversas
formas de produção, sempre estiveram presentes seus intelectuais orgânicos e
suas crises ou, o fim de uma determinada sociedade deveu-se sempre à capacidade
destes intelectuais reorganizarem a estrutura daquela forma de produção.
Gramisci afirma que apesar de qualquer homem poder ser considerado um
intelectual, nem todos os homens têm, na sociedade, a função de
intelectuais. E cita como exemplo o fato
de alguém poder em determinado momento fritar ovos, sem significar que ele seja
um cozinheiro. Formam-se assim, historicamente, categorias especializadas para
o exercício da função intelectual; formam-se em conexão com todos os grupos
sociais, mas, sobretudo, em conexão com grupos sociais importantes, e que sofrem
elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo social dominante. O
autor acredita que uma característica importante é a assimilação dos
intelectuais tradicionais e que a escola sempre foi o lugar em que se formaram
os novos intelectuais orgânicos de um novo regime de produção. “A escola é o
instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis” (GRAMSCI, 1991,
V2, C 12 p. 19). O fato dos intelectuais tradicionais saberem que a escola é a
possibilidade de reafirmação do sistema vigente, mas, também pode ser a base do
pensamento para a sua transformação.
Para Gramsci, a consciência da criança
não é algo “individual, mas é o reflexo da fração de sociedade civil da qual a
criança participa, das relações sociais tais como se aninham na família, na
vizinhança, etc” (GRAMSCI, 1991, V2, C 12 p. 44). Naturalmente a escola luta
contra o folclore, contra todas as sedimentações tradicionais de concepção do
mundo. Pode-se dizer que na escola o nexo instrução-educação somente pode ser
representado pelo trabalho vivo do professor, na medida em que o professor é
consciente dos contrastes entre o tipo de sociedade e de cultura que ele
representa e o tipo de sociedade e de cultura representado pelos alunos. Um
professor medíocre pode conseguir que os alunos se tornem mais instruídos, mas
não conseguirá que sejam mais cultos. A escola foi separada da vida. O fato de
a escola não ter acompanhado uma mudança radical de um determinado modo de
vida, separou a escola da vida e isso determinou a crise na escola. Gramsci já
pressentia na escola de sua época uma profunda crise da tradição cultural e da
concepção da vida e do homem, caracterizando um processo de progressiva
degenerescência.
A filosofia busca a superação do senso
comum e essa superação, exige o domínio de teorias, conceitos e categorias de
análise. Renê José Trentin Silveira em artigo no livro “O Transversal e o Conceitual no ensino de Filosofia”: Abstrata, difícil, inútil: o preconceito contra a
Filosofia, o antídoto gramsciano, nos lembra que, o preconceito contra a
filosofia, em considerá-la difícil para o entendimento das camadas populares:”
se explica historicamente pela divisão da sociedade em classes e pela separação
entre trabalho intelectual e trabalho manual”, (SILVEIRA, 2014, p 273). A
superação dessa questão deve vir pela transformação da estrutura social por
meio de uma luta também cultural, isto é, pelo modo de agir de pensar de uma
nova sociedade. A criação de uma nova cultura compatível com a hegemonia que se
quer, pode ser desenvolvida também no ensino público. Sua definitiva
eliminação, portanto, supõe a superação da forma de sociedade, para ele, a luta
pela transformação da estrutura social:
deve vir acompanhada de uma luta
cultural, visando à renovação da mentalidade popular e à criação de uma nova
cultura, mais compatível com a nova
sociedade que se pretende instaurar e com as novas relações de hegemonia que se
devem estabelecer (SILVEIRA, 2014, p273).
A escola, quanto mais ligada à realidade
e à cultura, mais poderá contribuir para a formação de um sujeito integral,
pois poderá atuar na organização política, além de possibilitar o caminho para
a humanização integral do homem. E já que nos fazemos homens historicamente, e
as crises orgânicas são os momentos propícios para se promover mudanças e
transformações da realidade, pois:
A crise orgânica é a mudança
morfológica das forças que organizam e guiam o crescimento civil dentro de uma
determinada formação social. Traz consigo a possibilidade do desenvolvimento
posterior que uma formação social tem em seu seio, com a potência criativa dos
sujeitos agregando-os e orientando os vários reagrupamentos sociais para o
confronto de classes na sociedade capitalista. Seria, para Gramsci, a guerra de
posição, baseada na função dos sujeitos na História (SAID, 2014, p.113).
A escola deve ser para Gramsci, o
lugar de educar os alunos, tendo em vista um projeto revolucionário, para formar
uma outra e nova sociedade. Assim, podemos pensar a escola como um dos
aparelhos de hegemonia no interior do qual se pode disputar o poder político na
promoção da “guerra de posição”, isto é, o espaço de se posicionar e preparar
os “instrumentos” e as estratégias para a guerra de movimento. A guerra de
posição, segundo Gramsci, antecede a “Revolução”. É o movimento certo, que se
aproveitando de uma crise do Capitalismo, pode iniciar a criação de uma nova
civilização. Embora seja o partido educador e o lugar em que se processa a
passagem dos componentes do grupo social de nível da atividade econômica à
aquela de atividade intelectual e política, é na escola que se adquire base
teórica para que se aprofunde a compreensão das principais exigências teóricas
da realidade.
Maria Socorro Militão, na revista Gramsci e os movimentos sociais: O
transversal e o conceitual no ensino de filosofia, afirma que Gramsci
assimilou o conceito de reforma intelectual moral do filosofo e historiador
francês Joseph Ernest Renan (1823-1892) que, em sua obra “A reforma intelectual
e moral” (1871), desenvolveu um modelo de educação popular que propunha uma
“revolução intelectual e moral” para a França, similar à Reforma Protestante
alemã, apresentando-a como elemento de elevação civil das massas. Escreve:
“Para Gramsci, as ideias de Sorel sobre a urgência de uma reforma intelectual e
moral continha, ainda que de modo intelectualista e dispersa, ‘uma concepção da
filosofia da práxis como reforma popular moderna’” (MILITÃO, 2011, p.138).
Trata-se, pois, da passagem dos “simples” ou “subalternos” em sentido
gramisciano a uma posição mais “elevada”:
O extrato dos intelectuais se
desenvolve quantitativa e qualitativamente, mas todo progresso para uma nova
amplitude e complexidade do estrato dos intelectuais está ligado a níveis
superiores de cultura e amplia simultaneamente o seu círculo de influência com
a passagem de indivíduos ou mesmo de grupos mais ou menos importantes, para o
estrato dos intelectuais especializados (GRAMSCI, 2001, V1, p. 104-105).
A educação parece ter sido uma das
principais preocupações intelectuais de Gramsci. Uma dúvida que se pode afirmar
que o persegue, mesmo antes da prisão, é como deveria ser a linha ideológica a
ser preterida, ou preferida pela pedagogia educacional. Manacorda, na obra “O princípio educativo em Gramsci”, cita
registro em várias Cartas que foram enviadas aos seus familiares, em que
manifesta essas preocupações. Uma educação espontânea ou naturalista, onde ele
cita o realismo de Rousseau, e do outro lado, uma educação mais austera ou
autoritária, como a que ele recebeu em sua infância. Numa carta endereçada a
Tania, sua cunhada, em tom de brincadeira, ele diz que uma dúvida em relação ao
cultivo das plantas o persegue. Ao longo do muro do pátio da prisão ele plantou
sementes que Tania tinha lhe enviado e que parecia demorar muito para
crescerem, por isso ele, registra:
Todos os dias me vem a tentação
de puxá-las um pouquinho afim de ajuda-las a crescer, mas permaneço inerte
entre as duas concepções de mundo e de educação: se devo ser rousseauniano e
deixar em paz a natureza que não se equivoca, mas é fundamentalmente boa, ou se
devo ser voluntarista e forçar a natureza introduzindo na evolução a mão
habilidosa do homem e o princípio da autoridade, (GRAMSCI apud MANACORDA, 2013, C.123, 22/04/1929,
p.80).
A partir desta data, Gramsci parece
tomar uma posição mais efetiva em relação à educação e ter uma concepção mais
rigorosa da postura do educador. Em discussões com a mulher em relação à
educação de seu filho Delio, que ele acreditava não estar desenvolvendo os
estudos a contento, ele considerava que toda a família da esposa tivesse uma
postura muito natural com a educação de seu filho, que define como metafísica.
Ele passa a rejeitar todo o inativíssimo, como uma hipótese de qualquer forma
de metafísica, enfatizando, ao contrário, a existência de uma determinação
ambiental.
Manacorda destaca, aqui, “a história
percebida também como condicionamento do homem, como ‘coerção’ (outra
palavra-chave da pedagogia gramsciana). Excetuando-se a quase identidade entre
as duas expressões”. (MANACORDA, 2013, p. 86). Daqui em diante Gramsci rejeita
todo inatismo, enfatizando, ao contrário, a existência de uma determinação
ambiental que, deixada agir espontaneamente, só pode resultar em desilusões.
Eis o que afirma Manacorda ao interpretar o filosofo sardo: “Gramsci assinala
em relação ao autoritarismo jesuítico, uma distância bem maior que em relação
ao liberalismo rousseauniano; se não se avalia essas distâncias, elimina-se
toda possibilidade de se entender os dois riscos opostos do espontaneísmo e do
autoritarismo” (Idem, p. 87). Descartada qualquer forma de autoritarismo,
procura-se elaborar uma concepção original e um de seus pontos de partida será
a crítica a contradição do espontaneísmo, sob o argumento de que o respeito
pela criança traduz-se, na prática, no abandono desta. Daí argumentou que:
Renunciar a formar a criança
significa apenas permitir que sua personalidade se desenvolva extraindo
caoticamente do ambiente geral todos os motivos de vida. É estranho e
interessante que a psicanálise de Freud esteja criando, especialmente na
Alemanha (a julgar pelas revistas que leio) tendências similares às que
existiam na França do século dezoito; e vá formando um novo tipo de bom
selvagem corrompido pela sociedade. Nasce daí uma nova forma de desordem
intelectual muito interessante (GRAMSCI, Carta 402 a Giulia, 1936, p.87).
Gramsci considera que o complexo
educacional deve ter compromisso social com o seu tempo, expressando seu
caráter universal de compreensão da realidade e contribuindo para a
generalização do conhecimento, visto que a autêntica atividade educativa não
visa uma finalidade prática imediata, mas atingir o plano da universalidade,
sua função original figura um momento de consciência de si em determinado
momento histórico. Elevar o homem para além de sua continuidade e imediatismo
para um plano superior universal e chegar à consciência, visando a
transformação de si mesmo e da sociedade.
Ao colocar o homem como único
demiurgo da história Marx inaugurou uma nova filosofia que não precisa de
complemento de outros filósofos, pois contempla, em sua dimensão ontológica,
todos os complexos da realidade, e a sua filosofia não se restringe a uma
simples análise da sociedade capitalista, mas ao que funda o mundo dos homens,
o que funda o ser social. Marx inaugura uma nova concepção de mundo, a
Filosofia da práxis.
Na Ideologia Alemã, Marx afirma que a filosofia de sua época se
limitava à critica das representações religiosas a partir da religião real e da
verdadeira teologia. O progresso, segundo aquelas teses, consistiria em
subsumir também as representações religiosas ou teológicas às representações
metafísicas, políticas, jurídica ou moral, como consciência religiosa ou
teológica, em última instância o “Homem”, como religioso. O domínio da religião
foi pressuposto e, aos poucos, declarou-se que toda relação dominante era
relação religiosa. Os velhos hegelianos haviam compreendido tudo, desde que sob
uma categoria da lógica hegeliana, já os jovens criticavam tudo, introduzindo
sorrateiramente representações religiosas por baixo de tudo ou tudo como algo
teológico. Esqueceram apenas que opõem a estas, fraseologias, e que, ao
combaterem os discursos deste mundo, não combatem de forma alguma o mundo real
existente. Os pressupostos de que partimos não são arbitrários, nem dogmas, mas
reais e destes não se pode fazer abstração, a não ser na imaginação. A religião
foi considerada por estes filósofos como a causa última de todas as relações
repugnantes (MARX, 1999, p 26).
No Caderno 11, (V1, 2014 p 174),
Gramsci aponta que o senso comum afirma a objetividade do real na medida em que
a realidade, o mundo, foi criado por Deus independentemente do homem. Essa é
uma expressão da concepção mitológica do mundo; e ao descrever essa objetividade,
incorre-se nos erros mais grosseiros, sem saber estabelecer os nexos reais de
causa e efeito. Para o pensador sardo, isso seria o mesmo que afirmar ser
“objetiva” uma certa “subjetividade” anacrônica, pois sequer sabe conceber a
possibilidade de existência de um concepção subjetiva do mundo. Isso, entretanto
não quer dizer que as ciências são verdadeiras e definitivas. Assim, se nem as
ciências são verdades definitivas e peremptórias, também a ciência é uma
categoria histórica, um movimento em contínua evolução. Ela “não exclui a
cognoscibilidade, mas a condiciona ao desenvolvimento dos instrumentos físicos
e ao desenvolvimento da inteligência histórica dos cientistas individuais”
(Gramsci. V1, C11, 2014, p.174). Marx chama a atenção para examinar a história
dos homens com muito cuidado, pois, podemos registrar na história fatos que
foram interpretados de maneira errada ou deturpada. Aqui podemos citar um
exemplo que estudamos nos livros didáticos de história, quando citam os países
invadidos pelos romanos, denominam: ”Expansão do Império Romano”, mas quando os
territórios são reconquistados, são: “Invasões Bárbaras”.
A preocupação de Gramsci e Marx é esclarecer este
possível engodo. Marx e Engels escrevem onze teses para mostrar os possíveis
erros que podemos cometer: “quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção
distorcida da história, ou a uma abstração completa dela. A própria ideologia
não é senão um dos aspectos da história” (MARX e ENGELS, 1999, p. 24)
[3].
A classe dominante quer transmitir
para a classe dos subalternos que o que é bom para ela é bom para toda a
sociedade, quando na verdade a classe dominante apresenta idéias, e propostas
que somente a ela se identifica. Quanto mais progride a civilização, mais se vê
obrigada a encobrir os males que traz necessariamente consigo, ocultando-os com
o manto da caridade, enfeitando-os ou simplesmente negando-os. Em resumo,
introduz uma hipocrisia convencional que sequer era conhecida pelas primitivas
formas de sociedade e pelos primeiros estágios da civilização e que culmina na
declaração de que a classe opressora explora a classe oprimida única e
exclusivamente no interesse da própria classe explorada. “E, se essa não o
reconhece e até se rebela, isso será expressão da mais baixa ingratidão contra
seus benfeitores, os exploradores” (ENGELS, 2009, p 218).
O trabalho é a ação teleologicamente
orientada e objetivada, ou seja, é a ação constituída, primeiro, pelo momento
de planejamento, pela capacidade de projetar antecipadamente na consciência, e,
em seguida, o momento que converte aquilo que foi planejado em objeto,
causalidade posta, que é tudo que foi feito e produzido pelo homem na sua intermediação
com a natureza. Não obstante, devido à totalidade social permeada de
determinações, na qual o sujeito ativo e seu produto então inserido, o produto
foge ao controle do criador por movimentar séries causais e estar sujeito a
determinações sociais e naturais, resultando em consequências imprevisíveis.
Contudo, partindo do pressuposto de
que o mundo objetivo foi construído pelo trabalho social, compreendemos que “a
reprodução social comporta e, ao mesmo tempo, requer outros tipos de ação que
não especificamente de trabalho” (LESSA, 1997, p.23-24). A práxis social mantém
com o trabalho uma relação de dependência ontológica e de uma determinação
recíproca, além de terem uma autonomia relativa.
A educação que nasce da relação do
homem com o homem, fundada pela eterna mediação homem-natureza, surge como
complexo universal de transmissão e generalização do conhecimento produzido e
acumulado para a geração do ser genérico, lançando mão da linguagem para
tornar-se patrimônio da humanidade, para cumprir a função ontológica que,
segundo Saviani, é “[...] produzir, direta e intencionalmente, a humanidade que
foi produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (Saviani,
2003, p.13). O homem, a cada nascimento, precisa tornar-se homem. Aproxima-se
do patrimônio genérico do ser social transmitido através da educação. Assim, o
trabalho possui papel determinante na análise do complexo da educação, pois
como afirma (TONET, 2007, p 52), a educação possui uma função essencial na
difusão do conhecimento acumulado e da cultura humanística construída historicamente
pela humanidade.
É nesse aspecto, a escola que Gramsci
pensa no viés do marxismo genuíno, possibilita uma formação omnilateral,
completa, que rompa com todos os paradigmas hodiernos que buscam simplesmente
justapor opostos, mantendo a contradição funcional do sistema vigente. A
formação omnilateral visa, única e exclusivamente, contribuir para a dissolução
do poder e organização dos múltiplos sujeitos da sociedade civil, criando a
subjetividade necessária que somente é possível com a subversão da ordem de
dominação para a instituição de uma sociedade genuinamente humana,
possibilitando aos sujeitos coletivos não somente no âmbito da escola unitária,
mas em todos os espaços e instituições que a sociedade comporta ou vier a
criar, pela participação ativa na vida política, econômica e cultural.
O princípio cultural e educativo
gramsciano é, portanto, unitário: o problema é que uma formação completa é dado
a alguns e negado a outros. A objetividade crescente da sociedade industrial
contrapôs a velha cultura humanística, a nova cultura tecnológica, fragmentando
e desagregando a velha unidade e exclusividade da cultura tradicional, levando,
assim, à crise da escola. Dessa análise, surge a busca da solução “racional”
(não significa, iluministicamente, produzida pela razão; mas objetiva,
consistente com os fins), na qual Gramsci delineia uma nova organização
educativa. Uma escola unitária vinculada às instituições produtivas e culturais
da sociedade.
Em suma, podemos aferir que a teoria
gramsciana traz em seu cerne uma grande contribuição de caráter revolucionário
para a discussão educacional, principalmente enfrentando as propostas
dominantes. A escola deve fazer parte dessa frente única nucleada nas forças
sociais antagônicas ao capital, fundamentalmente a classe operária e o
campesinato pobre. Essas classes subalternas devem organizar-se de maneira
autônoma segundo sua própria experiência, criando instituições sociais próprias
que dariam materialidade à subjetividade antagônica em desenvolvimento. O
partido revolucionário deve ser o elemento de coordenação, centralização e
difusão dessa subjetividade antagônica, para que filtre o que não seja benéfico
à classe operária.
Gramsci, na prisão, sempre esteve
preocupado e envolvido com uma possibilidade educativa que interviesse para o
processo de formação do homem novo, a aceitação consciente de uma tarefa que
sempre existiu, embora sob formas diversas, entre os velhos e os jovens, entre
a classe hegemônica e as classes subalternas. A formação do homem novo e livre
é necessária conjuntamente à consolidação de uma nova sociedade, emancipada, em
que os antagonismos de classes sejam superados e sejam postas as possibilidades
materiais e espirituais de desenvolvimento das potencialidades individuais e
coletivas para uma sociedade comunista.
Gramsci propôs a escola única com a
finalidade de preparar os trabalhadores, os subalternos, para que pudessem
efetivar uma aliança com os intelectuais orgânicos e com as forças que se
desprendiam da ordem vigente, promover um suceder de objetivos transitórios,
que culminaria com a revolução socialista e a realização da democracia do
trabalho. A escola proposta daria respostas mais completas desvelando os
estigmas colocados pelas estratégias dominantes. Assim, essa escola foi a
primeira a se preocupar com todas as questões concernentes a formação humana e
a que ofereceu as melhores respostas aos problemas educacionais percebidos por
Gramsci durante o curto período de sua vida, grande parte no cárcere, refletiu
e aprofundou sua ciência política, procurando compreender melhor todas as
questões teóricas relacionadas à escola e outras instâncias que poderiam
contribuir com a formação de um novo homem.
Em suma, aferimos que a teoria
gramsciana traz em seu cerne uma grande contribuição de caráter revolucionário
para a discussão educacional, especialmente na contraordem das propostas
dominantes. Gramsci defende severamente a necessidade de elevação do
subalterno, de fazer de cada um desses indivíduos um ser humano, com acesso a
todo patrimônio intelectual e material construído historicamente pela
humanidade. O pensador sardo, busca na teórica e na prática educacional, a construção
de uma nova forma de sociabilidade humana. O conhecimento cultural possibilita,
para Gramsci, o conhecimento de si mesmo, e assim o homem pode sair da condição
de subalternidade e elevar-se culturalmente e materialmente, podendo, desta
feita, ativa e conscientemente, participar da construção da história, de sua
própria história.
A amplitude da obra gramsciana não
nos permite finalizar as nossas considerações de modo pronto e acabado, mas
como uma vereda que se abre, apontando uma longa jornada a percorrer, de idas e
vindas teórico-práticas. E diante dos vastos elementos novos que se apresentam
durante o processo de desvelamento de seu pensamento. Gramsci nos deu assim um
programa educativo em acordo com sua concepção de mundo. Que é exatamente contrária
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Artigo
apresentado na disciplina, Iniciação ao Estágio: Seminários Temáticos, sob a
orientação da professora doutora Maria Socorro Militão.
[2] O
movimento Escola sem partido nasceu em 2003, a partir da iniciativa do procurador do Estado
de São Paulo, Miguel Nagib. Em 2014
a família Bolsonaro abraçou esse projeto. Essa escola
seria totalmente acrítica, com a proibição da leitura de alguns autores como
Paulo Freire, Engels, Marx. Na verdade é uma escola que proíbe pensar a
possibilidade viver numa sociedade diferente dessa que vivemos.
[3] Nota de
Rodapé da Ideologia Alemã