INSTITUTO DE FILOSOFIA – FACULADE DE FILOSOFIA
A HISTÓRIA DA LOUCURA DE FOUCAULT E O ALIENISTA DE MACHADO DE ASSIS
Trabalho
apresentado ao Curso de Graduação em Filosofia, do Instituto de Filosofia da
Universidade Federal de Uberlândia, para a disciplina Contemporânea II.
Professora: Geórgia Amiterano.
JOÃO DONIZETI ALVES
TEODORO. N° 87405
UBERLÂNDIA, MG
2016
A HISTÓRIA DA LOUCURA E O ALIENISTA
A proposta desse trabalho é relacionar
o livro filosófico de Michel Foucault, A História da Loucura com o livro
literário de Machado de Assis, O Alienista. Primeiramente podemos observar que
o escritor brasileiro procura trazer em seus personagens quase sempre uma característica
que possibilita uma analise filosófica e que Foucault é um literato que se
aproxima do poético, o terceiro capitulo deste livro corrobora essa análise. O
conto de Assis, trás a história pitoresca de Simão Bacamarte, um médico
dedicado a cura dos loucos da cidade de Itaguaí.
Se fizermos uma análise das obras de
Michel Foucault, segundo a professora Georgia Amiterano, podemos constatar que
esse pensador tem uma preocupação constante com o "Saber", o
"Poder" e o "Sujeito". Nesse contexto a obra a
"História da Loucura" analisa o indivíduo com transtorno mental desde
a Idade Média até a contemporaneidade. Desde quando a loucura era considerada
uma predileção divina e aquele indivíduo poderia ser a encarnação de Jesus que
voltara para avaliar as pessoas segundo seus ensinamentos. Mas adiante com a
influência do Renascimento e a valorização do Homem, a beleza e a riqueza
começam a serem valorizadas e vistas como graça de Deus. No período que Foucault
denomina Clássico (séculos XVII – XVIII), a loucura e o desatino devem ser
tratados com remédios e castigos. O amor
desatinado (promiscuidades e homossexualidades) é considerado uma loucura, e
nessa perspectiva todos devem ser internados nos hospitais especializados.
Foucault faz uma análise de como a
loucura era percebida na Idade Média, no Renascimento, no Classicismo e na
Modernidade. O que era critério para o internamento manicomial nesses
determinados períodos. A verdade é temporal, loucura numa época é diferente da
loucura de outra época. Não é um conceito absoluto, está relacionado com a
normatização do discurso. Em Vigiar e Punir, Foucault desenvolve como fomos
normatizados, enfim, como nos fizemos corpos dóceis. Não há uma verdade
absoluta, não há um discurso pronto e acabado, tudo é provisório. O filósofo
chama a atenção para o fato de que a ciência médica parece esquecer a
subjetividade da pessoa que possui transtorno mental. Todas as pessoas,
inclusive os loucos tem um discurso de verdade, não o discurso aceito pelas
pessoas que possuem um poder de racionalidade. Mas, próprio de cada um sem as
normas vigentes, mas transparecendo suas subjetividades.
Falar da loucura para Foucault é
discutir um saber, um discurso possível que construímos e essas práticas e
poderes por outro lado vêm nos construindo. O sujeito é uma invenção moderna é
o fenômeno político em Kant. O sujeito é o objeto do conhecimento e também o sujeito
do conhecimento. O nomenon (coisa em si) e o fenômeno (sujeito lingüístico).
O livro de Machado de Assis, O Alienista,
conta que as crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali
um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos
médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos
trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que
ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios
da monarquia.
O médico Dr. Bacamarte, aos
quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e
cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Mergulhou inteiramente no estudo e na prática
da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a
atenção, o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na
colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal
explorada, ou quase inexplorada.
A loucura é sempre vista como algo negativo, não importa o que o louco
faz ou o louco fez: é negativo. A história da loucura é a história da exclusão.
No período do Renascimento os loucos eram metidos em barcos e soltos nos rios: “A
Nau dos Loucos estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e
dos canais flamengos”. (FOUCAULT, 2014, p.9). Os antigos hospitais que
abrigavam os leprosos serviram para o recolhimento dos loucos. O que sai do
padrão de normalidade, o outro que não me espelha, esse é o louco. A ciência
deve sustentar o diagnóstico que determina o internamento e os medicamentos que
ele necessita. O louco é visto a partir de um olhar que não identifica a minha
imagem, ou a minha suposta normalidade. O que está fora da norma é o louco que
não me espelha. Os loucos que não podem ser espelhados nos “normais” estes não
damos o direito de voz. O seu desajuízo não lhe permite subjetividade, ou seja,
não lhe permite discursar. “O olhar que incide só incide sobre o louco – o que
é a experiência médica (...). Na época das visitas a Bicêtre ou Bedlam, ao
olhar-se o louco avaliava-se, do exterior, toda a distância que separa a
verdade do homem da sua animosidade. Agora, ele é olhado simultaneamente com
mais neutralidade e mais paixão” (Ibidem, p.511).
O Dr. Alienista, de Machado de
Assis, descobre que em Itaguaí cada louco furioso era trancado em uma alcova,
na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha
defraudar do benefício da vida. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar
tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício
que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades,
mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o
não pudesse fazer. Apenas o médico é competente para julgar se um indivíduo
está louco, que grau de capacidade lhe permite sua doença. Para a cidade a
idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma
sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.
Foucault afirmou que a
liberdade que Pinel e Tuke impuseram ao louco encerra-o numa certa verdade da
loucura à qual ele não pode escapar a não ser passivamente, se é liberado de
sua loucura. A partir daí, a loucura não mais indica um certo relacionamento do
homem com a verdade, relacionamento que, pelo menos silenciosamente, implica
sempre a liberdade; ela indica apenas um relacionamento do homem com sua
verdade. Na loucura, o homem cai em sua verdade: o que é uma maneira de sê-la
antigamente, mas também de perdê-la.
O momento em que a
jurisprudência da alienação se torna a condição preliminar de todo internamento
é também o momento em que, com Dr. Pinel, está nascendo uma psiquiatria que
pela primeira vez pretende tratar o louco como um ser humano. Mas, parece haver
dois lados do desatino: um que envolve o sujeito de direito; ele é cercado pelo
reconhecimento jurídico da irresponsabilidade e da incapacidade, pelo decreto
da interdição e pela definição da doença. O outro lado do internamento é o do
escândalo, que envolve o homem social. Foucault salienta duas formas de
alienação inteiramente diferentes:
Uma considerada como limitação da subjetividade –
linha traçadas nos confins dos poderes do indivíduo e que isola as regiões de
sua irresponsabilidade; essa alienação designa um processo pelo qual o sujeito
se vê despojado de sua liberdade através de um duplo movimento: aquele natural,
de sua loucura, e outro jurídico, de interdição, que o faz cair sobre os
poderes de um Outro: o outro em geral, no caso representado pelo curador. A
outra forma de alienação designa, pelo contrário, uma tomada de consciência
através da qual o louco é reconhecido, pela sociedade, como estranho a sua
própria pátria: ele não libertado de sua responsabilidade, atribui-se-lhe, ao
menos sob as formas do parentesco e de vizinhanças cúmplices, uma cumplicidade
moral; é designado como sendo o Outro, o Estrangeiro, e o Excluído (FOUCAULT,
2014, p. 134).
Uma alienação que concerne
ao caído sob o poder do Outro e acorrentado à sua liberdade, a segunda, que diz
respeito ao individuo que se tornou um Outro, estranho à semelhança fraterna
dos homens entre si. Uma aproxima do determinismo da doença, a outra assume
outro aspecto de uma condenação ética.
O médico de Machado de
Assis arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a
casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha
cinqüenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os
hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara
veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que
não pequem. A idéia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no
frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo,
atribuiu o pensamento a Benedito VIII.
A Casa Verde foi o nome dado
ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes
em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações
próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente
para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam
recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a
caridade cristã com que eles iam ser tratados,
De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam
loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a
família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era
uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria
de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência
de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um,
por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço,
fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de
apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio
e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira,
três meses antes, jogando peteca na rua.
Os loucos por amor eram
três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um
Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços
e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas
esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro
andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos
corredores, à procura do fim do mundo.
Diferentemente da Casa Verde
o Hospital Geral desde 1656, atribuía-se a tarefa de impedir a mendicância e a
ociosidade, bem como as fontes de todas as desordens. “O desemprego não é mais
escorraçado ou punido: tornou-se conta dele, as custas da nação, mas também de
sua liberdade individual. Entre ele e a sociedade, estabelece-se um sistema
implícito de obrigação: ele tem direito de ser alimentado, mas deve aceitar a
coação física e moral do internamento.
Quanto a mim, tornou o vigário de Itaguaí, só
se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta
a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil
trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe... Essa pode ser, com efeito, a
explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um
instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente
científica.
Foucault afirma que aquilo
que diz o lirismo é mostrado pela obstinação do pensamento discursivo; e aquilo
que se sabe do louco assume uma significação inteiramente nova. O olhar que
incide só incide sobre o louco – o que é a experiência completa médica (...). E
o louco, com isso, redobra seu poder de atração e fascinação; ele carrega mais
verdades, além da sua própria (Foucault, 2014, p. 512).
Creio, diz Ciprião, Herói de Hoffmann, creio que,
exatamente através dos fenômenos anormais, a Natureza nos permite olhar em seu
temíveis abismos, e com isso no próprio âmago desse pavor que me assaltou
muitas vezes nesse estranho comércio com os loucos, intuições e imagens muitas
vezes surgiram em meu espírito que lhe deram uma vida, um vigor e um impulso
singulares. (HOFFMANN apud Foucault, p.512).[1]
Uma vez desonerado da
administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus
enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os
mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Homem
de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma
coisa o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um
olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a idéia de que algum
demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo. Todo o tempo que lhe
sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em
casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas
de um olhar que metia medo aos mais heróicos. No conceito dele a insânia
abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia
de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em
Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos
os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade
alguns personagens célebres, Sócrates, Pascal.
Para Foucault, o discurso,
o saber, o poder, o sujeito e a subjetividade estão todos interligados. No
livro a Ordem do Discurso, o pensador, afirma que o discurso não é simplesmente
de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta o poder do qual nos queremos
apoderar.
“Penso na
oposição razão e loucura. Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo
discurso não pode circular com o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja
considerada nula e não seja acolhida. Não tendo verdade nem importância. Não
podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um contrato” (FOUCAULT,
1971, p.10).[2]
Imagina-se a consternação
de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o
Costa ensandecera, no almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os
acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis, ou mansos, e até engraçados,
conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa,
tranqüilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que
motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte
aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a
ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última
pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se
atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. Bacamarte
espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela
acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do
vice-rei, e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à
Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados.
A notícia desta aleivosia
do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar
de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde
uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de
interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros;
edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira
à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a
vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele
levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era
naturalmente a capa do velhaco.
A Casa Verde é um
cárcere privado, disse um médico sem clínica. Nunca uma opinião pegou e grassou
tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de
leste a oeste de Itaguaí, a medo, é verdade, porque durante a semana que se
seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, duas ou três de
consideração, foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram
admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se
as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania
do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em
Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir,
com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não
explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.
Um dos oradores, por
exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado,
curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D.
Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. “Deus, disse ele, depois
de dar ao universo o homem e a mulher, esse diamante e essa pérola da coroa
divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da
mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista." O terror
acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As
mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa
Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um
ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia, emigrava. Um desses
fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta
anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem
levar o chapéu ao chão. Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens
em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado
não é o alienista?
Daí em diante foi uma
coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples
mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que
não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas,
os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida
alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé
enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as
namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um
impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia
do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a
completa sanidade mental.
Alguns cronistas crêem que
Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação
(que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura
autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a
pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias
duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da
insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives, amigo e compadre dele; mas,
conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova
ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma
multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o
verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e
aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais
obscuros da história de Itaguaí; a opinião mais verossímil é que eles foram
recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na igreja.
Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples
conjetura; de positivo, nada há.
E agora prepare-se o leitor
para o mesmo assombro em que ficou a vila, ao saber um dia que os loucos da
Casa Verde iam todos ser postos na rua. De fato, o alienista oficiara à Câmara
expondo: 1°, que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde, que
quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2°,
que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua
teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía do domínio da razão todos os
casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que,
desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a
verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que se devia
admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses
patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4°, que
à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa
Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas;
5°, que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços
de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º, que restituía à
Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos
supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação,
roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.
Entretanto, a Câmara que
respondera ao ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente
estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi
adotada sem debate uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa
Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades
mentais. O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum caso
fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita,
votada e incluída na postura, apesar das reclamações do vereador Galvão. O
argumento principal deste magistrado é que a Câmara, legislando sobre uma
experiência científica, não podia excluir as pessoas.
Chegado a esta conclusão, o
ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de
abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes
investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar
esta verdade: não havia loucos em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só
mentecapto. Mas tão depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu
que neutralizou o primeiro efeito; foi a idéia da dúvida. Pois quê! Itaguaí.
não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta não seria
por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso
edifício da nova doutrina psicológica?
Para Foucault, no período
da Revolução Francesa, enorme era a confusão e difícil era determinar o lugar
que a loucura deveria ocupar na “humanidade” que estava sendo reavaliada. E
mais difícil era situar a loucura num espaço social que estava em vias de
reestruturação.
Situação ambígua, porém significativa do embaraço
então existente, e que é testemunho de novas formas de experiências que estão
surgindo. Para compreendê-la, é necessário justamente libertar-se de todos os
temas do processo, daquilo que eles implicam de visão perspectiva e de
teleologia. Levantada essa opção, deve-se poder determinar as estruturas de
conjunto que arrastam as formas da experiência num movimento indefinido, aberto
somente para a continuidade de seu prolongamento, e que nada poderia deter,
mesmo para nós (FOUCAULT, 2014, p.422).
A aflição do egrégio Simão
Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas
tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só
aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte
minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade. Isso
é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio
mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a
perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as
qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo,
e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu
convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi
afirmativa. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e
ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão
a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e
equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.
Mas o ilustre médico, com os
olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e
brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à
cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no
mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao
ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí, mas
esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não
tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre
Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como
for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.
Foucault cita Tenon que
afirma que internamento dos loucos só pode ser decretado de maneira definitiva
se os cuidados médicos fracassarem. Mas o internamento já não é mais, de uma
maneira rigorosamente negativa, abolição total e absoluta da liberdade. Deve
ser, antes, liberdade restrita e organizada.
O primeiro remédio é oferecer ao louco uma certa
liberdade, de modo que possa entregar-se comedidamente aos impulsos que a
natureza lhe impõe.[3]
Em seu enigma essencial, a loucura espreita sempre
prometida a uma forma de conhecimento que a delimitará inteiramente, mas sempre
distanciada em relação a toda abordagem possível, uma vez que ela que
originalmente permite ao conhecimento objetivo uma ascendência sobre o homem. A
eventualidade de estar louco, para o homem, e a possibilidade de ser objeto (FOUCAULT, 2014, p.457).
INDIVIDUAL
Alegria de ver
a primeira margarida
despontar
em meu jardim
(apenas um canteiro).
Flora da propriedade.
Flor da poesia.
a primeira margarida
despontar
em meu jardim
(apenas um canteiro).
Flora da propriedade.
Flor da poesia.
Todas as flores são particulares.
Segredam intimidade
sob o sol coletivo.
Segredam intimidade
sob o sol coletivo.
(De Jornada Lírica. Antologia poética (1984))
[1]
HOFFMANN, cit., por BÉGUIN, loc, cit., p. 297.
[2]
FOUCAULT, A Ordem do Discurso, Edições Loyola, 16° ed., São Paulo, 1996.