quarta-feira, 27 de julho de 2016

A HISTÓRIA DA LOUCURA DE FOUCAULT E O ALIENISTA DE MACHADO DE ASSIS

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

INSTITUTO DE FILOSOFIA – FACULADE DE FILOSOFIA



 



A HISTÓRIA DA LOUCURA DE FOUCAULT E O ALIENISTA DE MACHADO DE ASSIS



Trabalho apresentado ao Curso de Graduação em Filosofia, do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, para a disciplina Contemporânea II. Professora: Geórgia Amiterano.













JOÃO DONIZETI ALVES TEODORO. N° 87405

UBERLÂNDIA, MG

2016




     A HISTÓRIA DA LOUCURA E O ALIENISTA

       

        A proposta desse trabalho é relacionar o livro filosófico de Michel Foucault, A História da Loucura com o livro literário de Machado de Assis, O Alienista. Primeiramente podemos observar que o escritor brasileiro procura trazer em seus personagens quase sempre uma característica que possibilita uma analise filosófica e que Foucault é um literato que se aproxima do poético, o terceiro capitulo deste livro corrobora essa análise. O conto de Assis, trás a história pitoresca de Simão Bacamarte, um médico dedicado a cura dos loucos da cidade de Itaguaí.

        Se fizermos uma análise das obras de Michel Foucault, segundo a professora Georgia Amiterano, podemos constatar que esse pensador tem uma preocupação constante com o "Saber", o "Poder" e o "Sujeito". Nesse contexto a obra a "História da Loucura" analisa o indivíduo com transtorno mental desde a Idade Média até a contemporaneidade. Desde quando a loucura era considerada uma predileção divina e aquele indivíduo poderia ser a encarnação de Jesus que voltara para avaliar as pessoas segundo seus ensinamentos. Mas adiante com a influência do Renascimento e a valorização do Homem, a beleza e a riqueza começam a serem valorizadas e vistas como graça de Deus. No período que Foucault denomina Clássico (séculos XVII – XVIII), a loucura e o desatino devem ser tratados com remédios e castigos.  O amor desatinado (promiscuidades e homossexualidades) é considerado uma loucura, e nessa perspectiva todos devem ser internados nos hospitais especializados.

        Foucault faz uma análise de como a loucura era percebida na Idade Média, no Renascimento, no Classicismo e na Modernidade. O que era critério para o internamento manicomial nesses determinados períodos. A verdade é temporal, loucura numa época é diferente da loucura de outra época. Não é um conceito absoluto, está relacionado com a normatização do discurso. Em Vigiar e Punir, Foucault desenvolve como fomos normatizados, enfim, como nos fizemos corpos dóceis. Não há uma verdade absoluta, não há um discurso pronto e acabado, tudo é provisório. O filósofo chama a atenção para o fato de que a ciência médica parece esquecer a subjetividade da pessoa que possui transtorno mental. Todas as pessoas, inclusive os loucos tem um discurso de verdade, não o discurso aceito pelas pessoas que possuem um poder de racionalidade. Mas, próprio de cada um sem as normas vigentes, mas transparecendo suas subjetividades.


        Falar da loucura para Foucault é discutir um saber, um discurso possível que construímos e essas práticas e poderes por outro lado vêm nos construindo. O sujeito é uma invenção moderna é o fenômeno político em Kant. O sujeito é o objeto do conhecimento e também o sujeito do conhecimento. O nomenon (coisa em si) e o fenômeno (sujeito lingüístico).

         O livro de Machado de Assis, O Alienista, conta que as crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.

        O médico Dr. Bacamarte, aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática.  Mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada.

        A loucura é sempre vista como algo negativo, não importa o que o louco faz ou o louco fez: é negativo. A história da loucura é a história da exclusão. No período do Renascimento os loucos eram metidos em barcos e soltos nos rios: “A Nau dos Loucos estranho barco que desliza ao longo dos calmos rios da Renânia e dos canais flamengos”. (FOUCAULT, 2014, p.9). Os antigos hospitais que abrigavam os leprosos serviram para o recolhimento dos loucos. O que sai do padrão de normalidade, o outro que não me espelha, esse é o louco. A ciência deve sustentar o diagnóstico que determina o internamento e os medicamentos que ele necessita. O louco é visto a partir de um olhar que não identifica a minha imagem, ou a minha suposta normalidade. O que está fora da norma é o louco que não me espelha. Os loucos que não podem ser espelhados nos “normais” estes não damos o direito de voz. O seu desajuízo não lhe permite subjetividade, ou seja, não lhe permite discursar. “O olhar que incide só incide sobre o louco – o que é a experiência médica (...). Na época das visitas a Bicêtre ou Bedlam, ao olhar-se o louco avaliava-se, do exterior, toda a distância que separa a verdade do homem da sua animosidade. Agora, ele é olhado simultaneamente com mais neutralidade e mais paixão” (Ibidem, p.511).

        O Dr. Alienista, de Machado de Assis, descobre que em Itaguaí cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. Apenas o médico é competente para julgar se um indivíduo está louco, que grau de capacidade lhe permite sua doença. Para a cidade a idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência, e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico.

        Foucault afirmou que a liberdade que Pinel e Tuke impuseram ao louco encerra-o numa certa verdade da loucura à qual ele não pode escapar a não ser passivamente, se é liberado de sua loucura. A partir daí, a loucura não mais indica um certo relacionamento do homem com a verdade, relacionamento que, pelo menos silenciosamente, implica sempre a liberdade; ela indica apenas um relacionamento do homem com sua verdade. Na loucura, o homem cai em sua verdade: o que é uma maneira de sê-la antigamente, mas também de perdê-la.

        O momento em que a jurisprudência da alienação se torna a condição preliminar de todo internamento é também o momento em que, com Dr. Pinel, está nascendo uma psiquiatria que pela primeira vez pretende tratar o louco como um ser humano. Mas, parece haver dois lados do desatino: um que envolve o sujeito de direito; ele é cercado pelo reconhecimento jurídico da irresponsabilidade e da incapacidade, pelo decreto da interdição e pela definição da doença. O outro lado do internamento é o do escândalo, que envolve o homem social. Foucault salienta duas formas de alienação inteiramente diferentes:

Uma considerada como limitação da subjetividade – linha traçadas nos confins dos poderes do indivíduo e que isola as regiões de sua irresponsabilidade; essa alienação designa um processo pelo qual o sujeito se vê despojado de sua liberdade através de um duplo movimento: aquele natural, de sua loucura, e outro jurídico, de interdição, que o faz cair sobre os poderes de um Outro: o outro em geral, no caso representado pelo curador. A outra forma de alienação designa, pelo contrário, uma tomada de consciência através da qual o louco é reconhecido, pela sociedade, como estranho a sua própria pátria: ele não libertado de sua responsabilidade, atribui-se-lhe, ao menos sob as formas do parentesco e de vizinhanças cúmplices, uma cumplicidade moral; é designado como sendo o Outro, o Estrangeiro, e o Excluído (FOUCAULT, 2014, p. 134).



        Uma alienação que concerne ao caído sob o poder do Outro e acorrentado à sua liberdade, a segunda, que diz respeito ao individuo que se tornou um Outro, estranho à semelhança fraterna dos homens entre si. Uma aproxima do determinismo da doença, a outra assume outro aspecto de uma condenação ética.

        O médico de Machado de Assis arranjou tudo. Uma vez empossado da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha cinqüenta janelas por lado, um pátio no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A idéia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII.

       A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusão à cor das janelas, que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados,

         De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete. O Padre Lopes confessou que não imaginara a existência de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! um rapaz que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua.

        Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão, rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa feição de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores, à procura do fim do mundo.

       Diferentemente da Casa Verde o Hospital Geral desde 1656, atribuía-se a tarefa de impedir a mendicância e a ociosidade, bem como as fontes de todas as desordens. “O desemprego não é mais escorraçado ou punido: tornou-se conta dele, as custas da nação, mas também de sua liberdade individual. Entre ele e a sociedade, estabelece-se um sistema implícito de obrigação: ele tem direito de ser alimentado, mas deve aceitar a coação física e moral do internamento.

         Quanto a mim, tornou o vigário de Itaguaí, só se pode explicar pela confusão das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente, confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que a razão não trabalhe... Essa pode ser, com efeito, a explicação divina do fenômeno, concordou o alienista, depois de refletir um instante, mas não é impossível que haja também alguma razão humana, e puramente científica.

        Foucault afirma que aquilo que diz o lirismo é mostrado pela obstinação do pensamento discursivo; e aquilo que se sabe do louco assume uma significação inteiramente nova. O olhar que incide só incide sobre o louco – o que é a experiência completa médica (...). E o louco, com isso, redobra seu poder de atração e fascinação; ele carrega mais verdades, além da sua própria (Foucault, 2014, p. 512).

Creio, diz Ciprião, Herói de Hoffmann, creio que, exatamente através dos fenômenos anormais, a Natureza nos permite olhar em seu temíveis abismos, e com isso no próprio âmago desse pavor que me assaltou muitas vezes nesse estranho comércio com os loucos, intuições e imagens muitas vezes surgiram em meu espírito que lhe deram uma vida, um vigor e um impulso singulares. (HOFFMANN apud Foucault, p.512).[1]



        Uma vez desonerado da administração, o alienista procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência; e se alguma coisa o preocupava naquela ocasião, se ele deixava correr pela multidão um olhar inquieto e policial, não era outra coisa mais do que a idéia de que algum demente podia achar-se ali misturado com a gente de juízo. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heróicos. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios, de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos os casos de Itaguaí e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade alguns personagens célebres, Sócrates, Pascal.

        Para Foucault, o discurso, o saber, o poder, o sujeito e a subjetividade estão todos interligados. No livro a Ordem do Discurso, o pensador, afirma que o discurso não é simplesmente de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta o poder do qual nos queremos apoderar.

 “Penso na oposição razão e loucura. Desde a alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular com o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida. Não tendo verdade nem importância. Não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um contrato” (FOUCAULT, 1971, p.10).[2]



        Imagina-se a consternação de Itaguaí, quando soube do caso. Não se falou em outra coisa, dizia-se que o Costa ensandecera, no almoço, outros que de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis, ou mansos, e até engraçados, conforme as versões. Muita gente correu à Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranqüilo, um pouco espantado, falando com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali. Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos de estima e compaixão, mas acrescentava que a ciência era a ciência, e que ele não podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que intercedeu por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais. Quando ela acabou, estendeu-lhe a mão polidamente, como se o fizesse à própria esposa do vice-rei, e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou; ele levou-a à Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados.

        A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada, que não tinha outro crime senão o de interceder por um infeliz. Comentava-se o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas namoradas que o alienista outrora dirigira à prima do Costa, a indignação do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava, pareciam desmentir uma tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco.

                A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica. Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de Itaguaí, a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, duas ou três de consideração, foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.

        Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos reptos. “Deus, disse ele, depois de dar ao universo o homem e a mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus, e criou D. Evarista." O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia, emigrava. Um desses fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila. Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o chapéu ao chão. Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?

        Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental.

         Alguns cronistas crêem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo. Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer um ourives, amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há.

        E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila, ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua. De fato, o alienista oficiara à Câmara expondo: 1°, que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde, que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2°, que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía do domínio da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4°, que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5°, que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º, que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

        Entretanto, a Câmara que respondera ao ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adotada sem debate uma postura autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura, apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara, legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas.

        Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve duas sensações contrárias, uma de gozo, outra de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo de longas e pacientes investigações, constantes trabalhos, luta ingente com o povo, podia afirmar esta verdade: não havia loucos em Itaguaí; Itaguaí não possuía um só mentecapto. Mas tão depressa esta idéia lhe refrescara a alma, outra apareceu que neutralizou o primeiro efeito; foi a idéia da dúvida. Pois quê! Itaguaí. não possuiria um único cérebro concertado? Esta conclusão tão absoluta não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?

        Para Foucault, no período da Revolução Francesa, enorme era a confusão e difícil era determinar o lugar que a loucura deveria ocupar na “humanidade” que estava sendo reavaliada. E mais difícil era situar a loucura num espaço social que estava em vias de reestruturação.

Situação ambígua, porém significativa do embaraço então existente, e que é testemunho de novas formas de experiências que estão surgindo. Para compreendê-la, é necessário justamente libertar-se de todos os temas do processo, daquilo que eles implicam de visão perspectiva e de teleologia. Levantada essa opção, deve-se poder determinar as estruturas de conjunto que arrastam as formas da experiência num movimento indefinido, aberto somente para a continuidade de seu prolongamento, e que nada poderia deter, mesmo para nós (FOUCAULT, 2014, p.422).



        A aflição do egrégio Simão Bacamarte é definida pelos cronistas itaguaienses como uma das mais medonhas tempestades morais que têm desabado sobre o homem. Mas as tempestades só aterram os fracos; os fortes enrijam-se contra elas e fitam o trovão. Vinte minutos depois alumiou-se a fisionomia do alienista de uma suave claridade. Isso é isto. Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Duvidou logo, é certo, e chegou mesmo a concluir que era ilusão; mas, sendo homem prudente, resolveu convocar um conselho de amigos, a quem interrogou com franqueza. A opinião foi afirmativa. Simão Bacamarte curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato continuo, recolheu-se à Casa Verde. Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o detiveram um só instante.

       Mas o ilustre médico, com os olhos acesos da convicção científica, trancou os ouvidos à saudade da mulher, e brandamente a repeliu. Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada. Alguns chegam ao ponto de conjeturar que nunca houve outro louco, além dele, em Itaguaí, mas esta opinião, fundada em um boato que correu desde que o alienista expirou, não tem outra prova senão o boato; e boato duvidoso, pois é atribuído ao Padre Lopes, que com tanto fogo realçara as qualidades do grande homem. Seja como for, efetuou-se o enterro com muita pompa e rara solenidade.

        Foucault cita Tenon que afirma que internamento dos loucos só pode ser decretado de maneira definitiva se os cuidados médicos fracassarem. Mas o internamento já não é mais, de uma maneira rigorosamente negativa, abolição total e absoluta da liberdade. Deve ser, antes, liberdade restrita e organizada.

O primeiro remédio é oferecer ao louco uma certa liberdade, de modo que possa entregar-se comedidamente aos impulsos que a natureza lhe impõe.[3]



         Em seu enigma essencial, a loucura espreita sempre prometida a uma forma de conhecimento que a delimitará inteiramente, mas sempre distanciada em relação a toda abordagem possível, uma vez que ela que originalmente permite ao conhecimento objetivo uma ascendência sobre o homem. A eventualidade de estar louco, para o homem, e a possibilidade de ser objeto (FOUCAULT, 2014, p.457).
INDIVIDUAL

Alegria de ver
a primeira margarida
despontar
em meu jardim
(apenas um canteiro).
Flora da propriedade.
Flor da poesia.
Todas as flores são particulares.
Segredam intimidade
sob o sol coletivo.

          (De Jornada Lírica. Antologia poética (1984))



[1] HOFFMANN, cit., por BÉGUIN, loc, cit., p. 297.
[2] FOUCAULT, A Ordem do Discurso, Edições Loyola, 16° ed., São Paulo, 1996.
[3] TENON, Projet de rapport au nom Du comitê dês secours , ms, B.N., f. 232.

terça-feira, 26 de julho de 2016

A AMÉRICA PARA OS AMERICANOS ( EUA )


          



        O século XXI iniciou-se com a alegre impressão que os EUA tinha dado autonomia aos países latinos americanos. Os EUA estavam com a atenção voltada para o Oriente Médio, logo depois o terrorismo tomou toda a sua preocupação. Assim, pudemos respirar aliviados e cuidar dos nossos problemas que não são poucos. Quase todos os países latinos americanos elegeram governos de esquerda, menos a Colômbia, que sofre uma influência forte dos Estados Unidos e o México que reclama por fazer divisa com esse país. Há muitos anos eles repetem: “vida triste do mexicano longe de Deus e perto dos EUA”. Também pertos dos EUA, estão Guatemala e Honduras, países com governos de direita, altos índices de corrupção e que também sofreram recentemente com “impeachment”.

        O Brasil com Lula, um metalúrgico no poder, parecia ter acordado, “O Gigante”. Deixou de se submeter à tutela do FMI e começou a participar com os países emergentes de discussões políticas a nível mundial. O Brasil e os países emergentes, com 25% da economia mundial, fundaram o grupo do BRICS. Só a Argentina com uma mulher no governo parecia não conseguia decolar e em 2015 assume o governo direitista de Macri. Mas, em sua maioria os países latino-americanos tentavam melhorar a vida de seus povos que foram por séculos tão duramente espoliados, explorados e maltratados. No Uruguai o governo do líder de esquerda José Mujica aprovava o casamento entre pessoas do mesmo sexo, legalizava a realização do aborto e do consumo de maconha.

        Evo Morales, um índio no governo da Bolívia de orientação socialista, tem atentado para a nacionalização de setores chave da economia e a implementação da reforma agrária. Enquanto o governo de Raul Castro em Cuba deixa de ser espezinhado pelos Estados Unidos. O governo da Venezuela sofre com uma luta sem trégua da direita raivosa daquele país. Depois da morte de Chaves, Maduro sofre boicote e manifestações orquestradas pelos setores conservadores venezuelanos. A crise nesse país ainda sofre a queda do preço do petróleo que é sua principal renda.

        No Paraguai um governo de formação religiosa sofreu um impeachment relâmpago, ou seja, o presidente Lugo foi destituído, sem se provar, nem ter o direito de defesa, em 22/06/2012. No Brasil, está marcado para o mês de agosto de 2016 o julgamento de um processo no Senado brasileiro que pode afastar a presidenta Dilma Rousseff eleita com 54 milhões de votos.

        A atenção dos EUA volta novamente para a America Latina, os países latino-americanos começam a ser marcados novamente por governos de direita subordinados ao Tio Sam, será que sempre seremos subjugados por esse espoliador e explorador de trabalhadores. A riqueza do mundo continua a ser concentrada na mão de cada vez menos pessoas e grande parte abandonada aos barcos de refugiados ou à própria sorte, sem educação e condições de sobrevivência dignas.